Introdução a “Librarianship and human rights: a XXI century guide”. Oxford: Chandos, 2007, de Toni Samek por Edgardo Civallero, encontrado em inglês e em espanhol
Tradução deste humilde bloguer que se revê em muita coisa aqui dita:
A informação representa poder.
Poder económico, social, político, humano… o poder para manejar recursos, para gerar
Bem-estar, para controlar vidas…
E um poder tão grande sempre está nas mãos de uns poucos. Muito poucas vezes se partilha.
Desde o amanhecer dos tempos, a informação permitiu compreender os ritmos da natureza e aproveitar seus recursos. Foi nessa altura que os campo deram à luz enormes colheitas, os rios foram domados e canalizados, as rochas e a argamassa se elevaram em muralhas, pirâmides e zigurates, as doenças começaram a ser curadas e o ferro e o vidro começaram a ser modelados. Toda essa informação foi cuidadosamente protegida por minorias privilegiadas: xamânes, chefes e mestres artesãos.
Com o surgimento das cidades e a progressiva complexificação das estruturas sociais, surgiu a escrita como uma ferramenta necessária para a organização do trabalho, os excedentes e as riquezas, ou quiçá para a preservação de uma nascente pirâmide social que se perpetuaria por séculos. Os valiosos escribas administraram os recursos humanos e materiais disponíveis (dirigindo os benefícios para os baús dos ricos), escreveram histórias (segundo a versão dos vencedores), proclamaram a excelência das castas governantes, louvaram aos heróis e aos deuses oficiais e anotaram as leis do céu e da terra, o que é dizer, as normas que deviam reger esta vida e a do Além. A escrita conservou para a posteridade uma parte mínima do conhecimento humano, mas ao mesmo tempo criou uma das barreiras mais implacáveis que já afligiu o homem: o analfabetismo. Os canais orais seguiram funcionando (até à actualidade) mas o conhecimento e a informação estratégica fecharam-se para sempre no mistério dos signos escritos. Em consequência, conhecer a escrita e controlar a informação significou poder: o poder que possui o que sabe.
Até ao nascimento dos sistemas de impressão, a informação manteve-se codificada nas tiras de fibras dos sacerdotes maias e aztecas, nos códices de pergaminho nos mosteiros europeus, nos manuscritos islâmicos e judeus, nas tabuinhas de bambu do sudeste asiático ou nas bandas de seda chinesas. O resto continuou transmitindo-se de boca em boca, de geração em geração, e mesmo assim, o conhecimento oral mais valioso continuava nas mãos de alguns eleitos.
O saber permitiu a melhoria de técnicas de navegação e medicina que levaram à descoberta de novos horizontes externos e internos; permitiu o desenvolvimento de engenhos e artefactos que melhoraram a agricultura e a industria; permitiu o crescimento e o progresso económico… Mas também permitiu a criação de armas que mataram em forma mais eficiente. Todo aquele que tem um lado luminoso tem também um lado obscuro, e o saber não iria ser a excepção.
Com a imprensa o conhecimento libertou-se, os livros chegaram a milhões de mãos e com eles difundiu-se o prazer da leitura e as possibilidades da escrita. Ler significou expressar e apreender ideias novas, exercer direitos e liberdades, cortar correntes, rasgar mordaças… Sem dúvida, a informação realmente importante continuou em mãos de minorias cultas: os cientistas, os filósofos, os aristocratas…
As clepsidras da História escoaram suas águas lenta e inexoravelmente. O mundo presenciou revoluções sociais e industriais, guerras sem sentido, maravilhosos descobrimentos, fome e morte, pragas e enfermidades, bombas nucleares e manifestações pela paz, monstros vencidos e fantasmas por vencer… De uma forma ou de outra, o saber teve um papel crucial em todos esses acontecimentos. E, de uma forma ou de outra, tal saber esteve sempre nas mãos de uns poucos. O progresso, o desenvolvimento, o “Primeiro Mundo”, a riqueza, o bem-estar e o crescimento só beneficiaram a uma minoria: uma enorme maioria continuou do outro lado do grande muro da educação, da alfabetização, da (in)formação, condenando a duras penas identidades e culturas e tentando sobreviver num mundo que os deixava para trás, sempre para atrás e para baixo.
Hoje a informação converteu-se num bem de consumo, o eixo em torno ao qual gira o actual paradigma sócio-económico: a “Sociedade do Conhecimento”. A (r)evolução digital e o desenvolvimento diário das tecnologias de telecomunicações permitem recuperar, armazenar e manejar conhecimento, permitem estar em contacto permanente, veloz e directo com pontos distantes do planeta e permitem levar uma biblioteca no bolso, numa simples chapa de plástico.
Mas, apesar de tantos descobrimentos e criações e de tantas novas portas abertas, o sistema e a estrutura continuam iguais: pouco mudou. Ainda há informados e desinformados, ainda há aldeias inteiras condenadas à ignorância e ao silencio, ainda há analfabetos, ainda há ricos e pobres. Só mudaram os títulos e os actores. A “Sociedade do Conhecimento” gerou novos núcleos de poder, criou novos abismos e diferenças e inventou novos analfabetismos. Uma grande parte do mundo contínua à sombra do desenvolvimento social e do progresso enquanto que os poderosos de sempre – apesar dos seus discursos – mantêm o poder nas suas mãos e as empresas multinacionais põem preço no saber valioso (medicina, biologia, engenharia, agricultura, genética, informática, telecomunicações) e alimentam suas contas bancárias.
A informação passou a ser propriedade de aquele que pode pagá-la. Os férreos direitos de autor fazem que até mesmo a arte e a literatura sejam para os que possam comprá-las e que a livre difusão se converta em algo quase ilegal. O conhecimento disponível nas redes digitais -abundante em quantidade e diversa em qualidade – só pode ser acedida por aqueles que disponham da tecnologia e os conhecimentos adequados.
O poder da informação continua a estar nas mãos de uns poucos, e os mecanismos e pessoas que mantêm este sistema a funcionar tornaram-se quase omnipresentes, mas invisíveis. As sociedades pobres, em desvantagem, deixadas para trás (porque para que exista o poder e o poderoso deve existir o seu oposto) seguem aqui, junto a nós, entre nós, connosco…
Por nossa causa.
O bibliotecário foi testemunha de todo este grande processo desde que se escreveu o primeiro signo sobre uma tabuinha de argila ou de um papiro. O papel da biblioteca foi-se alterando ao longo de séculos, adaptando-se flexivelmente às necessidades daqueles a quem serviu. De mero depósito de documentos passou a ser ninho de intelectuais, refúgio de clássicos em idades obscuras, escaparate de tesouros decorados, fonte de saber básico, apoio ao desenvolvimento e gestora de memórias. Muitas vezes foi cúmplice do poderoso e a ele serviu. Muitas outras lutou pela alfabetização e a difusão do conhecimento, pela livre expressão e o livre aceso ao saber, pela igualdade e pela solidariedade.
O bibliotecário poucas vezes foi consciente do poder que descansava em suas mãos e da imensa responsabilidade que significa geri-lo. Imerso em suas actividades tradicionais de conservação e organização, mareado quiçá pelas mudanças vertiginosas que os novos tempos lhe trouxeram, o bibliotecário parece não dar-se conta do importantíssimo papel que pode jogar na sociedade actual. Pode garantir liberdades e direitos humanos, tais como educação, informação, livre expressão, identidade, trabalho… Pode proporcionar ferramentas para a solução de problemas de saúde, violência, vícios e nutrição… Pode apagar todo o tipo de analfabetismos, pode recuperar a tradição oral, pode difundir conhecimentos perdidos e recuperar línguas em perigo…. Pode lutar contra o racismo e a discriminação, pode ensinar a tolerância e o respeito, pode facilitar a integração em sociedades multiculturais… Pode dar voz aos que são mantidos em silêncio, forças aos caídos, mão aos fracos… Pode demonstrar a igualdade de todos os seres humanos, de todos os sexos, idades, credos e raças… Pode difundir a solidariedade e a fraternidade, pode contar a historia dos vencidos, pode expressar as mais ínfimas facetas da maravilhosa diversidade humana, pode perpetuar memórias insignificantes e grandiosas… Pode difundir o acesso aberto, pode liberar a informação das grilhetas comerciais… Pode conseguir que, por uma vez na História, o poder não permaneça nas mãos de uns poucos. Pode conseguir um equilíbrio certo. Pode derrubar muralhas e estender pontes. Pode fazer que os homens consigam olhar-se nos olhos de igual para igual.
Na verdade, não pode fazê-lo. Deve fazê-lo.
Esta Guia demonstra claramente que muitos bibliotecários já reconheceram esse poder e esse dever e assumiram um papel social activo, criativo, imaginativo, consequente e solidário. Demonstra que muitos despertaram de um sono de séculos, derrubaram os muros de suas bibliotecas, destrancaram as estantes e fizeram chegar livros e saber a cada canto de suas comunidades. Demonstra que muitos bibliotecários gritam e sonham, reconhecem a dolorosa realidade que os rodeia e buscam soluções para os problemas e as necessidades de seus utilizadores trabalhando ao seu lado… A autora mostra neste texto que muitos se organizam, investigam, propõem, constroem, dialogam… Mostra que muitos se manifestam, protestam, queixam-se e convertem seus locais de trabalho e suas vidas em verdadeiras trincheiras, lutando por seus ideais: paz, justiça, liberdade, igualdade, esperança…
Esta Guia demonstra que a utopia não morreu. E enquanto exista a utopia, existirão motivos para seguir em frente.
Como bibliotecário e como anarquista, confio e desejo que as palavras e a informação que a minha amiga e colega Toni Samek liberta e difunde nestas páginas logrem rebentar os muros e derreter as grilhetas de milhares de mentes, e levem muitos a comprometer-se nesta luta sem armas.
A luta pela liberdade.
Edgardo Civallero
Córdoba (Argentina), Inverno austral de 2006